Quem será o próximo bode expiatório

 

Por Marcelo Tognozzi*

Os bodes eram levados ao Templo de Salomão e um deles seria sacrificado na fogueira. O outro seguiria para um ritual, no qual o sacerdote colocaria as mãos sobre a cabeça do bode, transferindo para o animal os pecados dos homens. Assim está escrito na bíblia, no livro do Levítico. Já se passaram muito mais de 2 mil anos e os humanos continuam dependendo de um bode para expiar seus pecados. O bode já não é mais um caprino. Virou gente.

Todos os dias alguém é transformado em bode expiatório. A Lava Jato deu a Lula o papel de bode expiatório de todos os pecados da corrupção, mas depois veio o Supremo Tribunal Federal e decretou que o bode é Sergio Moro. Há 3 anos, Bolsonaro é bode expiatório dos pecados cometidos pelos políticos, jornalistas, juristas e outros malabaristas que viram o presidente ser eleito muito mais pelos pecados deles do que por suas próprias virtudes de político.

Esta semana foi levado ao templo um novo bode. O cientista Evaristo de Miranda, rotulado de guru ambiental de Bolsonaro pelas vestais da ecologia e da ciência, o que é mais do que uma credencial para um, digamos, bode expiatório de 1ª linha. Nada menos que 12 apóstolos da ciência colocaram as mãos sobre a cabeça do professor Evaristo e repetiram o milenar ritual de imputar ao bode a culpa por todos os males da humanidade.

É chocante o autoritarismo de quem se nega a aceitar o contraditório, como se a democracia não tivesse sua essência na tolerância e na convivência entre opostos. Ninguém deveria sofrer assédio moral e ter sua reputação estraçalhada, somente porque pensa de forma diversa de um grupo que pretende instituir no Brasil um pensamento único sob o conveniente rótulo de “ciência consensual”.

Galileu Galilei por pouco não foi parar na fogueira da Inquisição, porque ousou discordar do “consenso científico-eclesiástico”, segundo o qual o sol girava em torno da Terra, e não o contrário. Foi obrigado a retratar-se e submeter-se à ditadura do discurso único para não ter o mesmo fim do matemático e filósofo Giordano Bruno, queimado vivo em praça pública. A fogueira moderna incinera a reputação de quem ousa expor um pensamento independente. Se alguém cantar é proibido proibir em pleno século 21, será vaiado como foi Caetano Veloso no Festival da Canção de 1968.

Um dos grandes problemas destes tempos obscuros é que a imprensa parou de pensar. Virou um elemento replicante, a repetir e publicar qualquer coisa, especialmente as politicamente corretas, sem ao menos parar para checar ou tentar entender a realidade que está por trás das narrativas que ajuda a sustentar. É um papel muito mais político do que informativo, uma deformação da missão da imprensa como prestadora do serviço público de informar sem distorcer os fatos e dar espaço para mais de uma versão.

É como se estivéssemos vivendo um mundo como o descrito no livro “A revolta de Atlas” de Ayn Rand, publicado em 1957, naquele trecho em que um famoso editor diz: “Não existem fatos objetivos. Toda reportagem não passa da opinião de alguém. Portanto, é inútil escrever sobre fatos”.

O Brasil tem muitos apóstolos da ecologia autoritária dos verdes europeus e das ONGs. Eles desejam impor uma prática e um discurso, desinfetado de divergências, sejam elas razoáveis ou não. Há uma enorme dificuldade de aceitar a realidade como ela é. Esta semana dei uma checada no relatório do Instituto Trata Brasil, entidade dedicada a estudar os serviços de distribuição de água tratada e de esgoto no Brasil.

É incrível a situação da região Amazônica brasileira, a joia da ecologia mundial a ser preservada a qualquer custo, vedete da Comissão de Meio Ambiente do Parlamento Europeu, da COP26 e todas as outras COPs que virão por aí. Se alguém se der ao trabalho de reler o capítulo sobre Amazônia do clássico de Josué de Castro, “Geografia da Fome”, verá que muito pouco o quase nada mudou – exceto a chegada da Zona Franca – desde a sua publicação em 1946.

A Amazônia tem o pior IDH do Brasil. A pobreza é a regra. No relatório de 2021 sobre o Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil e do Grupo GO, os dados são estarrecedores. Na página 61, aparecem cidades com os piores índices de atendimento urbano de esgoto. Manaus tem apenas 20%, Belém 15,9%, Macapá 11,4% e Porto Velho 4,54%. Como é que alguém pode falar em meio ambiente e preservação de rios e florestas se o esgoto destas capitais está indo para os rios, igarapés, para o solo ou subsolo sem qualquer tratamento? Como é que as pessoas que vivem nestas capitais podem colaborar com a preservação ambiental e a sustentabilidade se os dejetos produzidos por elas vão direto para os rios?

Em Rio Branco, mais de 40% das residências não têm água tratada. Em Macapá, 60%. Porto Velho, 63%. Em Belém, a situação é um pouco melhor: 28%.

Isso explica a péssima qualidade de vida da maioria da população amazônica, com boa parte ainda vivendo em palafitas. Há 10 anos, o repórter Aguirre Talento publicou na Folha uma reportagem mostrando que mais da metade da população de Belém vivia em palafitas, situação que não mudou. “Não tem saneamento. A descarga do vaso cai direto no córrego”, contou um dos moradores do bairro Terra Firme, ironicamente a capital da palafita paraense quando Belém era governada por Duciomar Costa (PTB). A situação já era ruim com o Psol de Edmilson Rodrigues, antecessor, e se manteve com o tucano Zenaldo Coutinho, sucessor de Costa. Circule por Manaus e você verá que tudo é muito parecido.

Uma política de preservação da nossa Amazônia precisa levar em conta esta situação de miséria, de exclusão social e científica. Os fundos internacionais, que costumam despejar dinheiro aqui, não me parecem focados na condição humana, mas apenas na questão ambiental. Acabam sendo financiadores da hipocrisia.

No Brasil do nós contra eles, estabelecido nas últimas duas décadas, muita gente foi massacrada em nome do politicamente correto, da ecologia, dos direitos individuais mais valorizados que os direitos coletivos ou ainda narrativas recheadas de desinformação. Tivemos nestes últimos anos um rebanho de bodes expiatórios jogados aos leões por um bando de espertos, os quais raramente respondem por seus atos como aconteceu com os incógnitos responsáveis pelo incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista.

“Sabe o que caracteriza o medíocre? É o ressentimento dirigido às realizações dos outros. Essas mediocridades sensíveis, que vivem tremendo de medo de que o trabalho de alguém se revele mais importante que o delas”, escreveu Rand. Quem eles escolherão para ser o próximo bode expiatório?

*Jornalista. Texto publicado originalmente no Poder360.

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